- O passaporte
O século XX traz para a Antropologia um conjunto vasto e complexo de novas ideias formuladas por um grupo brilhante de pesquisadores. Tudo isso vai exorcizando o fantasma do etnocentrismo de dentro da disciplina. A visão etnocêntrica dos diversos "outros" desse mundo muito pouco se abala com as revoluções da Antropologia. Relativizar é uma palavra que, até hoje, muito pouco saiu das fronteiras do conhecimento produzido pela Antropologia. Mas acompanhando o etnocentrismo dentro da ciência do "outro", encontramos muitas conquistas.
A Antropologia consegue, hoje, ver que sociedades diferentes podem ter concepções de existência tanto diversas entre si quanto igualmente boas para cada uma.
Com Franz Boas, suas ideias e seus alunos, a Antropologia se transforma substancialmente.
O grande passo que parece estar vinculado ao trabalho de Boas é o de iniciar uma reflexão que veio a relativizar o conceito de cultura. Num programa onde o evolucionismo tomava a cultura ocidental, do "eu", como absoluta e, a partir de seus padrões, organizava toda uma classificação das culturas do "outro", Franz Boas criou a sua revolução.
Foi ele o primeiro a perceber a importância de estudar as culturas humanas nos seus particulares. Cada grupo produzia, a partir de suas condições históricas, climáticas, linguísticas, etc., uma determinada cultura que se caracterizava, então, por ser unica, específica. Este relativismo cultural, essa pluralidade de culturas diferentes, visto por Boas é, se compararmos, uma ruptura importante do centramento, da absolutização da cultura do "eu", no pensamento evolucionista. Ampliou conhecimentos e enriqueceu enfoques através dos quais as diversas culturas do "outro" passaram a ser percebidas e estudadas.
O esforço de relativizar problematiza qualquer "saber". As ideologias, em especial as extremadas, odeiam qualquer possibilidade de relativização. Elas são centradas em seu próprio monólogo e a descentralização quebra sua auto-referência abrindo espaço a uma multiplicidade de pontos de vista, soluções e perguntas.
De qualquer forma, a Antropologia cresce e se transforma muito com isto, e ainda bem, pois é verdadeiro que o caminho de um pensamento que se quer científico é percorrido nesta justa medida.
Mas, esta relativização, que acontece na Antropologia pela mão de Franz Boas, faz com que seu papel, neste processo de fuga ao etnocentrismo, seja um pouco paradoxal. Em outras palavras, Boas não organizou e apresentou para a posterioridade uma teoria da cultura que permitisse, a alguém que fizesse uma história de ideias, antropológicas, tomá-la como um conteúdo evidente do seu trabalho.
O conceito de cultura não fica nitidamente cristalizado no seu trabalho. O interesse do seu pensamento se manifesta mais em levar hipóteses novas do que em torná-las sistematicamente formuladas.
Na inquietação e curiosidade do seu pensamento a cultura humana, ou melhor, as diversas culturas humanas (para Boas elas eram diferentes, plurais) vão ser vistas como relacionadas, ora com o ambiente que envolve o grupo, ora com as línguas por eles faladas, ora com os indivíduos que criam estas culturas.
Preocupado com o estudo da história concreta, particular de cada cultura ao invés de, como o evolucionismo, ter uma história única, geral, onde teriam de caber todas as culturas, voltou-se, definitivamente, para o mundo do "outro". A categoria de história perdia, com ele, o seu "H" maiúsculo tão fundamental aos evolucionistas. O "h", agora, era minúsculo. Não havia uma única história que se acumulava, em direção à sociedade do "eu". O "outro" também passa a poder contar a sua história que não iria desembocar, necessariamente, na "avançada" sociedade do "eu".
Assim, como consequência de um pensamento tão fértil, toda uma geração de antropólogos vai ser influenciada e vai desenvolver, em direções distintas, pistas, toques e intuições que, de alguma maneira, se fundamentavam nos escritos e nos projetos de Boas.
Do etnocentrismo à relativização, em toda parte, em diferentes planos e estratégias, a Antropologia dá andamento ao jogo entre o "eu" e o "outro".
Gilberto Freyre foi um aluno de Boas, que escreveu o livro Casa Grande & Senzala, um clássico da Antropologia brasileira, que fala exatamente sobre à cultura brasileira; que para formar a brasilidade, ele mistura cultura com, clima, geografia e ambiente e com, raças e personalidades dos povos que a formaram e ainda com, a língua.
São visões da cultura que, comparando ao evolucionismo, a relativizam por colocar elementos próprios à vida do povo que produz essa cultura como chave para seu entendimento. Em outras palavras, são estudos que começam a fugir do etnocentrismo por conseguirem ver que o ambiente onde vive uma sociedade deve ser, por exemplo, fator importante para explicar sua cultura.
Um grupo de alunos parte, para investigar a relação entre cultura e o ambiente, buscando aí explicação para a cultura e a história das sociedades humanas. Um segundo parte para relacionar a mentalidade, a psicologia dos indivíduos com a cultura por eles vivida. Um terceiro grupo investiga as relações entre linguagem e cultura.
Estes grupos são muito importantes, pois, através deles, mais e mais a Antropologia escapava ao etnocentrismo e relativizava. O "outro" já era olhado com a preocupação de entendê-lo segundo seus próprios problemas, características, segundo sua própria lógica.
Ruth Benedict e Margaret Mead venderam muitos livros nos EUA, onde foram escritos e editados, e no resto do mundo, onde foram traduzidos.Comparando a sociedade americana com sociedades tribais fazendo um trabalho de ida ao "outro" e volta ao "eu". Estabeleceu fértil diálogo com as teorias produzidas pela Psicologia.
A cultura marca as características que quer nos indivíduos ali formados - como se pode ou não se pode ser - e ela mesma se torna função do temperamento e da personalidade dos seus membros. A cultura marca e é marcada. Indivíduo e cultura de influenciam mutuamente. As ideias de personalidade e temperamento são como fatores capazes de determinar a base normativa da cultura.
Um dos maiores problemas desta corrente de pensamento, como de resto dos demais grupos que desenvolveram as ideias de Boas, é aquilo que chamamos de "reducionismo". Ou seja, a dificuldade de explicar alguma coisa que contém várias outras a partir de uma única das coisas contidas. Melhor dizendo, explicar o todo - a cultura - por uma de suas partes, no caso, a personalidade.
O mesmo problema - o "reducionismo" - se dá com o grupo que seguiu a pista de relacionar a cultura com a linguagem. Explicar a primeira com a segunda era o projeto, difícil e extremamente interessante, de um grupo que encarava a cultura privilegiando a língua nela falada como instrumento determinante para o seu entendimento. Neste grupo estava o antropólogo e linguista Edward Sapir, visto por muitos como o mais brilhante dentre os alunos de Boas.
Se a escola personalidade e cultura instaurou um criativo debate entre Antropologia e Psicologia, o grupo cultura e linguagem buscou no debate entre a Antropologia e a Linguística a principal fonte do seu pensamento.
A importância e a atualidade deste grupo está em ter dado muita substância e base para uma série de estudos de linguística e comunicação que procuraram relacionar, por exemplo, o emprego da linguagem e as diferenças de classes sociais nas chamadas sociedades complexas, industriais, contemporâneas.
Assim, a estrutura própria de uma língua qualquer é, para aqueles que a falam, o fator determinante que organiza sua visão do mundo que os cerca. A língua substanciaria a realidade e, para eles, modelaria a ordem cultural.
Um terceiro e também importante grupo de alunos de Boas partiu para relacionar a cultura e o ambiente. Este grupo é liderado por um antropólogo chamado Julien Steward. Aqui fica pressuposta a noção de que o ambiente é o fator determinante que restringe as opções culturais. Os elementos culturais terão nos ecológicos, no ambiente, no meio, o seu determinante fundamental para a mudança, numa espécie de jogo de readaptações e respostas. Ou seja, o ambiente modela a cultura.
Relativizar é sempre mais complicado, pois nos leva a abrir mão das "certezas" etnocêntricas em nome de dúvidas e questões que obrigam a pensar novos sentidos para a compreensão da sociedade do "eu" e da sociedade do "outro".
Nosso "turismo antropológico", do etnocentrismo à relativização, tem no guia Franz Boas alguém capaz de nos deixar grandes lições.
ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Coleção primeiros passos)